Entenda o Autismo

AUTISMO: Ecolalias, resistências e as estereotipias sociais


¹Daiane Duarte Lopes

² Roberto Rosa de Matos

RESUMO

Este artigo visa possibilitar um olhar para o sujeito que possui o Transtorno do Espectro Autista - TEA - como ator social, repleto de potencialidades, enquanto agente ativo e incluso. Da importância desse agente de interação e  transformação social, frente a um existir psicopatologizado pelo diagnostico de transtorno do espectro autista, que muitas vezes limitam suas participações na sociedade. Propõe a reflexão aos sintomas e estereótipos atribuídos a esses sujeitos, ao passo que essa forma de pensar o autismo se faz tóxica, não apenas para esse sujeito, mas para sociedade num todo, que deixa de se beneficiar com suas contribuições.

Palavras-chave: Autismo; sintoma; interação social; inclusão.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O autismo, atualmente denominado como Transtorno do Espectro Autista – TEA, se caracteriza por sua singularidade no desenvolvimento humano. Estabelece distinção em diferentes instâncias, com alterações mais acentuadas em três áreas: nas interações sociais, nas modalidades de comunicação e nos comportamentos (American Psychiatric Association - APA, 2013).

 

¹Psicóloga, psicopedagoga, especialista em AEE e gestão de projetos educacionais, coordenadora na Clínica D. W. Winnicott em Porto Alegre, RS.

²Educador Físico, pedagogo, psicopedagogo, especialista em AEE e gestão educacional, professor na rede municipal da cidade de Guaíba, RS.

Ao longo da vida, a pessoa com TEA, tende a apresentar atipicidade no desenvolvimento dos padrões esperados para a idade maturacional e em sua relação com  estímulos e ao contexto ao qual está inserida.  Estes aspectos são únicos e se manifestam de maneiras subjetivas e específicas, variando em grau de influência na vida de cada sujeito, o que acarreta em modos bem distintos de existir de uma pessoa com autismo para outra.

 

A recente especificação do autismo, enquanto uma conjuntura de espectros, realizada pelo manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM- V, busca categorizar o autismo através de suas características singulares e colocando em evidência sua conceituação enquanto deficiência.  Sendo, desta maneira, importante destacar que o conceito de deficiência acompanha na atualidade uma transição para o reconhecimento e a expansão das possibilidades de existir de cada pessoa para além de normas e padrões específicos.

 

O conceito de normal, sugestiona a ideia de alguém ou algo que segue as normas. Sob o olhar de Gaudenzi e Ortega (2016) o conceito de deficiência pode ser visualizado em conformidade com a normatividade, escapando das lógicas enclausurantes da normalidade. Normatividade apoia a ampliação da visão do conceito de deficiência quando se refere ao desenvolvimento de autonomia em sincronicidade com a subjetividade e especificidades de cada sujeito.

 

Nesse sentido, ao que se refere ao autismo ou TEA, os padrões sociais de funcionamento são caracterizados principalmente por suas interações sociais únicas. Que podem ser notadas nas manifestações não padronizadas de aprendizagem, através de insistentes interesses por assuntos específicos. Na inclinação a rotinas e até mesmo nas dificuldades em modos típicos de comunicação e maneiras particulares de processar as informações sensoriais. Todas essas características atuam como diretrizes para a sua categorização e conceituação. Assim a reflexão e problematização de aspectos relacionados à neurodiversidade se colocam como urgentes para pensarmos a inclusão social, para além de um “estar entre”, mas como oportunidade de escuta e construção de territórios para as diferenças.

 

A lei 12.764 de 27 de dezembro de 2012 que “Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa Autista” (BRASIL, 2012). E o “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, instituído a partir da lei 13.146, de 06 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), promove que os direitos das pessoas com deficiência devem ser assegurados em conformidade com suas singularidades. Estas diretrizes estão fundamentadas nos princípios da universalidade e da solidariedade, sendo que para isso o Estado é o responsável por propiciar minimamente condições para que as pessoas com deficiência possam de fato se inserir na sociedade, com participação plena e efetiva, onde seja possível viver com independência e dignidade (BRASIL, 2015). 

 

Conforme o relatório mundial sobre a deficiência (OMS, 2012), as pessoas com deficiência representam 15% da população mundial, o que acarreta em cerca de um bilhão de sujeitos. Dessa forma é urgente e importantíssima a efetivação da perspectiva das políticas públicas da atualidade como ferramentas nas quais as pessoas possam conquistar espaço para existir. Sem ter que se limitar por barreiras arquitetônicas, estruturais, sociais, culturais ou econômicas que os coloquem em desvantagem perante outros que não possuem deficiências, denominados teoricamente como “típicos”.

 

No Brasil, nas últimas pesquisas realizadas pelo ministério da saúde estimasse que a cada 54 pessoas, 01 possui o diagnóstico de transtorno do espectro autista. No entanto, como consta no observatório do plano nacional de educação - PNE, “o Censo Demográfico não faz nenhuma referência à população com transtornos do espectro autista” ao que se refere à participação destas pessoas em espaços educacionais ou em espaços que possibilitem o seu desenvolvimento, ainda que estes aspectos estejam nas metas a serem cumpridas entre os anos de 2014 e 2024 (OBSERVATÓRIO PNE, 2018).

 

Então podemos pensar: “Que espaços sociais são possíveis para as pessoas com autismo?”

 

A organização de dispositivos de amparo, de presença e de escuta às pessoas com TEA devem atuar como amplificadores de suas vozes.  Promovendo uma genuína escuta das pessoas com autismo, e não somente analisa-los a partir do discurso dos seus cuidadores. Ecoando sua realidade, suas perspectivas, suas lutas, suas buscas por espaço, por territórios onde possam ser reconhecidas socialmente através de suas diferenças. Podendo estas diferenças atuarem como potencializadoras dessa noção de singularidade.

 

A partir destas considerações é possível pensar na interação “eu e outro” evocando uma multivocalidade como princípio da intersubjetividade. Onde o coletivo se faz dependente da pessoa como indivíduo, assim como o sujeito se constrói através do coletivo (KASTRUP; ESCÓSSIA, 2005). 

 

Desta forma, ao pensar nas pessoas com TEA, as singularizações também não se restringirão ao campo individual. Elas serão produzidas a partir do surgimento de um sujeito político que se anuncia como potência de manifestação e na constituição de processos instituintes. Arendt (2010) fala sobre a singularidade do “quem” de cada um, que se manifesta sob a condição do estar com os outros, implicando a “pluralidade humana”. Neste caso, a condição da pluralidade, fala, em termos políticos, onde não se pode pensar o ser humano senão como um ser com os outros. E não somente como um ser entre os outros.

 

...é possível pensar a manifestação política da singularidade sem reduzi-la a qualquer forma de individualismo, ao mesmo tempo em que também é possível pensar o ser coletivo, para além de toda fantasmagoria comunitária fundada na partilha comum de identidades definidas de maneira substancialista” (ARENDT, 2010, pg. 9-10).

 

Os sujeitos se constituem na experiência social, em seus trajetos singulares. Assim, podemos pensar o existir enquanto pessoa com TEA como campos de experienciação.

 

Para Guattari (1990), o sujeito é permanência, duração, persistência no tempo, um conjunto de singularidades e afirmações, crenças decorrentes de hábitos que o qualificam e lhe conferem “uma identidade”, por definição provisória, que será passível de transformações, assim que mudarem suas experiências.

 

Nesse sentido, não precisamos enclausurar o autismo no singular, restrito a um jeito de ser, preso a critérios que impõem uma única direção e portanto um único destino. O TEA é uma manifestação plural e engloba “autismos”. Pois, ainda que embora exista uma caracterização, esta não é estática. Uma mesma pessoa pode manifestar o TEA por infinitas possibilidades dentro das áreas atingidas. O diagnóstico esta manifesto em um sujeito, um ser que não se reduz de forma individual, ele esboça uma configuração subjetiva, circulando em intensidade como combustível para novos encontros, produtor de heterogeneização, sobrevoa diferentes territórios existenciais.

 

Todo sujeito é em si um Ser em movimento. Capaz de compor nos corpos o inusitado, a partir do encontro com o outro, definindo em cada sujeito uma lista de afetos e devires em uma multiplicidade de acontecimentos que nunca cessam. Assim, todo devir, se dá no encontro e assim como no acaso da experiência absorvida (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

 

Co((inclusões))

Um olhar sobre as vivencias e o existir diante da neurodiversidade das pessoas com transtorno do espectro autista – TEA, implica uma urgência da necessidade de dar voz a esta minoria social, que hoje - ironicamente - constitui a maior minoria. E que é  ainda mais marginalizada e distanciada do acesso aos seus direitos e da participação em políticas públicas que atendam de maneira equânime a todos.

 

Nesse sentido, todo terapeuta, professor, profissional e rede de apoio familiar de pessoas com TEA, preferivelmente, deve se propor como um espaço para o rompimento dos estigmas relacionados ao modo de ser e estar no viver destas pessoas. Buscando um olhar despatologizado e amplamente integrado as singularidades de cada ser. Quem sabe este olhar, sobre as pessoas com autismo, “não vistas”, “não ouvidas”, “silenciadas” pela falta de interesse cientifico, político, econômico e social, possa atrair outros olhares, outras escutas e possibilitar a abertura de transformações sociais?

 

Tais questões serão postas sob luzes, tons e formas variadas, impreterivelmente conduzidas a partir de lentes que permitam lançar um olhar sobre esse panorama social. Que se propõe latente na atualidade, inquietando e se colocando de modo proeminente diante da sociedade atual. Possibilitando o estremecimento de certezas, abrindo para a criação de novos horizontes.

 

Desta maneira se faz interessante refletir, buscando os traços de paisagens psicossociais produzidas por esses sujeitos, objetivando encontrar pontos de convergência e afinidades, explorando a potência do instante em que se desdobram. Como alguém que observa a execução do contorno de uma pintura que está sendo criada ao mesmo tempo em que surgem os movimentos de transformação. No entendimento que o modo como um existir é pensado modifica a maneira de agir sobre ele, entender as suas potencialidades, as suas visões de mundo, assim como as visões daqueles que convivem com quem está no autismo pode ser, no mínimo, libertador.

 

Viver com autismo, ou com qualquer outra neurodiversidade aponta um caminho, uma direção pela qual serão analisados diferentes pontos de vista, mas sob hipótese alguma deve implicar em sentenças sobre até onde a pessoa pode ir. Com apoio, compreensão, respeito e afetos, somente a pessoa com TEA poderá trilhar seu caminho e buscar superar o que precisar ser superado.

 

ABSTRACT

This article aims to allow a look at the subject that has Autistic Spectrum Disorder - ASD - as a social actor, full of potentialities, as an active and included agent. The importance of this agent of interaction and social transformation, facing a psychopathological problem by the diagnosis of autistic spectrum disorder, which often limits their participation in society. It proposes a reflection on the symptoms and stereotypes attributed to these subjects, while this kind of thinking or autism is toxic, not allowed to the subject, but to society at all, which leaves the beneficiaries with their contributions.

Keywords: Autism; symptom; social interaction; inclusion.

 

 

 

 

Referencias

 

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 11a edição. 2010.

BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 2012.

BRASIL, LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. Dispõe sobre a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm > . Acesso em : 04 de outubro de 2018.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Rio de Janeiro, Editora 34. 1997. pg. 18-19.

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KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo sociedade. Psicologia em Estudo. v. 10. n. 2. Maringá. 2005. pg. 295-304.

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